segunda-feira, 27 de abril de 2015

Desista dos teus sonhos, mas nunca de sonhar







Publiquei numa rede social uma postagem com um frase, sugerindo que as pessoas criassem um comentário crítico. A frase é a seguinte: “Não devemos desistir jamais, independente das pessoas e das circunstâncias. Desistir é para os fracassados”. Poucas pessoas realmente rebateram o que a frase diz, mas a maioria concordou com o que está escrito. Por que? Os jargões supremos da autoajuda – “Jamais desista dos teus sonhos”, ou “Jamais desista de lutar” – estão impregnados na mentalidade humana, acima de tudo aquela parcela da humanidade que não reflete antes de agir. Do quê não devemos desistir? De sonhar ou de um sonho específico?
Após alguns comentários, postei uma foto de Adolf Hitler, na qual escrevi: “Ele não desistiu jamais, independente das pessoas e das circunstâncias”. Hitler tinha um sonho, um plano, uma meta e levou a sua ambição até as últimas consequências, sendo a maior, a mais devastadora e a mais terrível, o Holocausto, onde milhões de judeus e outras pessoas consideradas fora dos padrões do Reich perderam as suas vidas. Todos concordamos que ele deveria ter desistido, não resta dúvida. Isto quer dizer que nem todos os nossos sonhos são legítimos e nem todos eles serão alcançados.
Nossos planos e nossas metas devem incluir as pessoas. Ninguém faz ou deixa de fazer algo “independente das pessoas”. Elas fazem parte de nós, da nossa realidade. Não devemos dar atenção àquelas pessoas que tentam minar as nossas forças, desacreditar-nos dizendo que não podemos, que não iremos conseguir, que não vale a pena. Enquanto dei ouvido a essas informações distorcidas, não cheguei a lugar algum como escritor. Ainda assim é preciso avaliar o que elas dizem. Pode ser que tenham percebido alguma falha ou limitação em nós que não havíamos percebido. Então podemos reavaliar nossas intenções, nossas ações e redirecionar nossos esforços.
Entretanto, quando agimos “independente das pessoas”, corremos o risco de passar por cima delas, de usá-las para nossos fins, de prejudicá-las. Isso pode acontecer com nossos entes queridos, nossos amigos, nossos colegas de trabalho, nossos irmãos da Igreja. É preciso agira com as pessoas e a favor delas. Não precisamos de inimigos nem de rivais, mas de aliados. A Palavra de Deus nos convoca a uma vida de partilha, de solidariedade, onde aquilo que sou e que tenho esteja a serviço da comunidade. Esse é um pensamento cristão baseado no amor de Deus. A minha vitória só é legítima quando outras pessoas também podem se sentir vitoriosas com a minha conquista, mesmo que seja apenas a alegria de me ver bem.
E o que dizer das circunstâncias? Nem sempre elas estarão a favor daquilo que desejamos e sonhamos. Geralmente o mundo irá oferecer resistências, as situações políticas e econômicas tenderão a erguer enormes barreiras para impedir o nosso avanço. Na família, na Igreja ou no trabalho encontraremos fatos que nos desestimularão, que dificultarão a nossa caminhada rumo ao alcance das nossas metas. É preciso convicção do nosso chamado, do nosso sonho, do nosso ideal. É necessária bastante fé para permanecermos firmes diante das investidas contrárias. Quando tudo está a favor, é mais fácil lutar. Mas até que ponto devemos insistir? Será que devemos mesmo lutar até as últimas consequências? Pode ser que elas não sejam nada boas. Ao contrário do que diz a frase – “Desistir é para os fracassados” – desistir é para os sábios, para aqueles que são humildes e inteligentes o suficiente para saber o momento certo de parar, de retroceder, de voltar atrás e fazer novos planos, traçar novas metas, estudar outros rumos.

A única derrota real é jamais tentar. Mas tentar e desistir quando está claro que estávamos lutando a luta errada, buscando o sonho errado e caminhando rumo ao abismo, é uma grande vitória que podemos experimentar. Não devemos desistir por medo, baixa autoestima, comodismo, preguiça, falta de confiança nos outros, pessimismo ou falta de fé. Essas coisas não justificam a desistência de um sonho e podem, sim, ser sinônimos de fracasso. Se as circunstâncias não forem boas, criemos outras que sejam. Sejamos proativos e resilientes. Desistir de um sonho, sim; mas desistir de sonhar, jamais!

Mizael Xavier

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domingo, 26 de abril de 2015

O PODER DESTRUIDOR DAS NOVELAS SOBRE AS FAMÍLIAS




Eis uma declaração categórica que com certeza tem levantado muitas questões: “Se uma novela tem o poder de destruir a sua família, sinto lhe dizer: o problema não está na novela, mas na sua família”. Tal declaração vem acompanhada da foto de duas atrizes globais se beijando na boca numa novela televisiva. Acusar a família de ser a culpada pela destruição moral e espiritual que as novelas têm perpetrado é no mínimo chocante. Mas é preciso chocar ainda mais afirmando que isso tem um fundo de verdade. Vamos, então, analisar os aspectos positivos e negativos, as verdades e as mentiras escondidas por trás dessa afirmação.
A primeira verdade é que as programações televisivas são feitas na medida do público que irá assistir. Erramos ao pensar que as redes de televisão vivem enchendo as suas programações com lixo cultural, programas de péssima qualidade. Em parte “nós” estamos errados. O que as emissoras fazem é apresentar aquilo que agrade ao público, que tenha audiência, tudo em nome do lucro. Abre-se mão da qualidade das programações em prol do ganho financeiro com as propagandas. Que empresa irá investir num anúncio em um programa que ninguém assiste? Geralmente, os programas são criados para agradar as classes C, D e E, o que se traduz no conteúdo das novelas e dos programas de auditórios, todos voltados para esse público. Isso não é preconceito, é fato cultural, social e mercadológico. As programações de maior qualidades ficam a cargo das TVs fechadas, cujo sinal é pago. Assim, o conteúdo das programações televisivas reflete a mentalidade das pessoas que as assistem. Em se tratando de uma novela, ela reproduz os anseios dessas pessoas, as suas aspirações, fala do seu dia a dia, reproduz a sua realidade. Todas as coisas acontecem de uma forma estigmatizada, claro, mas não deixam de refletir o que o grande público deseja assistir, produzindo a catarse que todos esperam.
A segunda verdade é: como estão as famílias hoje? Totalmente desestruturadas, individualizadas, informatizadas. Isso é culpa das novelas? Com certeza não. A culpada é a própria família que a cada dia tem mais se afastado mais do ideal divino de instituição familiar. Os pais já não param mais em casa e educam os seus filhos através dos tablets. Os valores morais estão sendo trocados por valores virtuais. A ética está relativizada e cada um é chamado a ser quem deseja ser e a fazer o que deseja fazer, sem medir as consequências. A lei anti-palmada impede a educação que sempre deu certo e coloca nas mãos de crianças e adolescentes a possibilidade de processarem os pais judicialmente (isto não é uma apologia ao espancamento). As meninas trazem seus namorados para dormirem na sua cama e os meninos, os namorados também. Aquilo que há séculos conhecemos como família tem se transformado num objeto amorfo, inominável, com belas exceções, graças a Deus. A regra ainda está clara. São essas famílias que se deixam influenciar pelas novelas, que tomam como verdade aquilo que nelas é exposto como uma quase revelação divina. As novelas ditam não somente os padrões da moda, mas também os padrões morais de muitas pessoas e muitas famílias. Por que? Porque elas já estão desestruturadas, porque lhes falta orientação, falta-lhes Deus e a sua Palavra. Esse tipo de família não pode ser destruída pelas novelas, porque já destruiu a si mesma há muito tempo. As novelas apenas refletem aquilo que já acontece cotidianamente na vida desses expectadores.
A terceira verdade é que a mídia influencia diretamente no comportamento das pessoas, e isto não é mito, é fato comprovado pela UNESCO. Como eu disse, não somente os padrões de moda são afetados pela produção midiática, os valores e o comportamento das pessoas também sofrem grave influência. No meu livro Memórias do silêncio: relatos e reflexões de uma vítima do bullying (2012, p. 128), faço uma explanação sobre a influência da mídia na mentalidade infantil e as suas consequências. Cito os autores Papalia, Olds e Feldman (2009, p. 378), que afirmam:

Em razão do longo tempo que a criança passa com essas mídias, as imagens que elas vêm podem tornar-se modelos primários e fontes de informações sobre como as pessoas se comportam no mundo. A imensa preponderância de estudos experimentais, longitudinais, epidemiológicos e transculturais sustenta uma relação causal entre violência na mídia e comportamento agressivo na infância, adolescência e idade adulta. De fato, a correlação mais forte com o comportamento violento é a da exposição previa à violência.

Esta não é uma verdade apenas para padrões violentos de comportamento, como para qualquer padrão ético e moral apreendido pelos telespectadores. De fato, a mídia constrói comportamentos durante o período de vida de uma pessoa. Dessa forma podemos afirmar que as novelas – tema central desse estudo – ajudam a transformar a mentalidade das pessoas e das famílias, destruindo-as paulatinamente. Isto significa que as pessoas, as famílias permitiram essa influência. Por maiores que sejam os avanços tecnológicos, ainda não foi criada uma forma de lobotomia capaz de implantar no cérebro de alguém uma mentalidade que ela não permita. Aqui pode-se falar de dois poderes: o do controle remoto e o do botão liga-desliga. As pessoas se deixam influenciar e permitem que em suas famílias cheguem certas informações e, mais ainda, transformam, por sua própria vontade, essas informações em verdades para a sua vida e em padrões para o seu comportamento. Se as famílias estão destruídas, dentro desse contexto, é porque permitiram essa destruição. Famílias já destruídas aplaudem essas programações e essas novelas sem se darem conta do abismo em que se encontram, porque, para elas, esse é o padrão, esse é o jeito certo de pensar e fazer as coisas. E é para essas famílias que as novelas globais existem.
            Desejaria terminar esse texto apresentando alguma afirmação contrária ao que o autor da frase citada anteriormente disse, mas sou levado a concordar com ele pelos motivos citados acima. O ser humano é influenciado constantemente pelo ambiente à sua volta (informações e situações), mas essa influência não é passiva, possui dois lados: o que influencia e o que se deixa influenciar. Ser influenciado não é errado e não se pode fugir disso o tempo todo, mas deixar-se influenciar é o verdadeiro cerne do problema. Temos o poder de mudar de canal, de desligar a TV, de pegar a Bíblia ou um bom livro para ler. Podemos ensinar os nossos filhos a respeito daquilo que eles assistem na TV, nas novelas, mostrando a forma correta de pensamento e ação. Podemos e devemos estabelecer critérios e limites para tudo aquilo que possa causar alguma influência naquilo que temos de mais precioso: a nossa família. Mas não o fazemos. Quando nos vemos alienados, idiotizados, conformados com um mundo pervertido, ganancioso e corrupto, colocamos a culpa nas mídias, na novela. No fundo, os culpados somos nós mesmos. São as nossas escolhas que determinam quem seremos e onde estaremos.
             Se não posso discordar da frase, quero apresentar uma proposta: desligue a televisão e abra a Bíblia! As novelas sempre serão um problema, um atentado à família, uma agressão à nossa inteligência, uma violação da nossa fé em Deus. As novelas sempre serão o retrato hediondo da sociedade que o ateísmo pretende construir: uma sociedade sem família e sem Bíblia, como anseiam os ativistas gays. As novelas sempre tentarão distorcer os valores morais, acima de tudo os valores cristãos. Elas pervertem o anseio divino pela salvação da humanidade. As novelas, acima de tudo as chamadas “globais”, têm por objetivo claro e descarado destruir o que Deus quer construir. Tudo aquilo que conhecemos como pensamento bíblico, essas novelas destroem. Elas são contra Deus, contra a Bíblia. Mas esse não é o lado mais nefasto da história. O que realmente é terrível, inconcebível e amedrontador é que a grande maioria das pessoas que se presta ao papel de assistir a esses teatros macabros se diga cristã, sejam católicos ou protestantes. Esse é o pior erro. É isso que você precisa mudar. Ore. Leia a Bíblia. Submeta-se a Deus.

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quinta-feira, 23 de abril de 2015

EVANGELII GAUDIUM E A INCLUSÃO SOCIAL DOS POBRES




OBSERVAÇÃO: O presente texto faz parte do livro "Missão Integral: evangelismo e responsabilidade social na dinâmica solidária do Reino de Deus", de minha autoria. À venda na Amazon


       A exortação apostólica Evangelii Gaudium – A alegria do Evangelho – do papa Francisco, ao episcopado, ao clero, às pessoas consagradas e aos fiéis leigos sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual, redigida em 2013, é o documento oficial mais recente da Igreja Católica que trata a respeito do evangelismo e sua dimensão social. Vamos nos ater à dimensão social da evangelização que transporta a Igreja para a realidade da Missão Integral. É importante deixar clara essa dimensão social da evangelização, uma vez que erros de interpretação podem levar a práticas erradas ou a falta delas. A presente exortação demonstra essa preocupação do risco de se “desfigurar o sentido autêntico e integral da missão evangelizadora” (n. 176)[1].
            Além da dimensão social da evangelização, que será exposta na quinta parte deste estudo, a Evangelii Gaudium expõe a inclusão social dos pobres. Inclusão social é um termo que deduz uma prática bem mais abrangente que o assistencialismo social e a própria ação social. Ambas podem ser praticadas sem a transformação integral que garanta ao pobre a inclusão no desenvolvimento econômico da sociedade, podendo atuar como protagonista da sua própria libertação. Muitas ações em favor dos pobres acabam por excluí-los ainda mais, mantendo-os presos a uma rede de caridade e assistencialismo castradores e mantenedores da desigualdade social. Sobre isso estudaremos posteriormente. O que a Missão Integral sugere e que encontra eco na Evangelii Gaudium, é a preocupação com o desenvolvimento integral dos pobres que “Deriva da nossa fé em Cristo, que Se fez pobre e sempre Se aproximou dos pobres e marginalizados” (n. 186).


O clamor dos pobres

            Assim se expressa a Evangelii Gaudium: “Cada cristão e cada comunidade são chamados a serem instrumentos de Deus ao serviço da libertação e promoção dos pobres, para que possam integrar-se plenamente na sociedade” (n. 154). O relato bíblico demonstra de maneira clara a preocupação de Deus pelo seu povo sofredor. Desde a expulsão de Adão e Eva do paraíso, Deus jamais deixou de buscar o homem, de demonstrar a sua preocupação amorosa e cheia de misericórdia para com o seu sofrimento. Quando escrava no Egito, a nação de Israel experimentou a libertação de Deus, conforme lemos no livro de Êxodo. Mesmo liberto, o povo ainda clamava, porque seus caminhos se desviavam dos caminhos de Deus. Então Deus lhes prometeu um salvador (Jz 3:15). Em todas as ocasiões aprouve a Deus usar pessoas como instrumentos e porta-vozes da sua libertação. Hoje, a Igreja é o instrumento utilizado pelo Senhor para levar esperança, cura, libertação e salvação ao mundo perdido e oprimido.
            A vontade de Deus é que socorramos os necessitados. “Ficar surdo a este clamor, quando somos instrumentos de Deus para ouvir o pobre, coloca-nos fora da vontade do Pai e do seu projeto” (n. 187). Na primeira parte deste estudo aprendemos que o cuidado com os pobres glorifica a Deus e que as suas obras incluem a prática do bem social. Aprendemos, também, que honrar o pobre é honrar a Deus e que o cristão deve preocupar-se com as misérias humanas, porque é ministro do Evangelho. O apóstolo João invoca um amor solidário e prático que ultrapassa a retórica ao afirmar: “Ora, aquele que possuir recursos deste mundo, e vir a seu irmão padecer necessidade e fechar-lhe o seu coração, como pode permanecer nele o amor de Deus?” (1 Jo 3:17). O apóstolo com certeza não está falando de cuidado com uma alma sofredora, mas com um corpo sofredor. Recursos deste mundo nada podem fazer por uma alma pecadora, o espírito abatido, mas podem saciar a fome de pão do miserável. Temos os recursos espirituais que nos permitem e nos impelem a utilizar nossos recursos deste mundo para socorrer o irmão que padece necessidade.
            A missão libertadora da Igreja não está restrita a um grupo exclusivo de pessoas, mas estende-se a todos aqueles que professam a fé em Jesus Cristo e depositam a sua confiança e esperança na Bíblia. A graça que nos alcançou e libertou, deseja alcançar e libertar integralmente aqueles que dela necessitam: os pecadores em seus pecados pessoais e sociais. A Igreja, guiada pelo Evangelho da Misericórdia e pelo amor a Deus e ao homem, “escuta o clamor pela justiça e deseja responder com todas as suas forças” (n. 188). Esse “escutar” se transforma numa ação de libertação quando deixamos apenas de ouvir nas ruas e nos noticiários os apelos por justiça e nos envolvemos amorosamente com aqueles que dela necessitam. Essa escuta “envolve tanto a cooperação para resolver as causas estruturais da pobreza e promover o desenvolvimento integral dos pobres, como gestos mais simples e diários de solidariedade[2] para com as misérias muito concretas que encontramos” (idem).
            Esse clamor do mundo pode ser um clamor urbano, onde as desigualdades sociais se agigantam de maneira diversificada (pobreza, drogas, violência, falta de educação, saúde e saneamento básico), ou pode ser o clamor rural dos sem-terra, dos seringueiros, dos trabalhadores em situação escrava, dos despojados por grileiros de terras. Mas também pode ser um clamor planetário: a natureza que morre pelas mãos do desenvolvimento e do capitalismo voraz, a necessidade de cuidar da atmosfera, das águas, dos animais. Há muito que ser ouvido. O tabloide “Grito dos/as Excluídos/as”, nº 59, de abril de 2014, informou: “Segundo dados do IPEA, divulgados em novembro de 2014, no Brasil, a diferença entre os mais ricos e os mais pobres é de 175 vezes”. O mesmo tabloide afirmou que “Dados da ONU afirmam que no mundo há entre 600 e 800 mil pessoas submetidas a regimes de escravidão”. Além disso, os 10% mais ricos concentram 41,9% da renda, enquanto os 10% mais pobres detêm 1,1% dos rendimentos.
            O planeta é para todos e não somente para alguns privilegiados. A Evangelii Gaudium (n. 190) afirma:

Respeitando a independência e a cultura de cada nação, é preciso recordar-se sempre de que o planeta é de toda a humanidade e para toda a humanidade, e que o simples fato de ter nascido em lugar com menores recursos ou menor desenvolvimento não justifica que algumas pessoas vivam menos indignamente.

            Neste planeta está a Igreja de Cristo, uma Igreja que congrega algumas das pessoas que fazem parte daquela porção privilegiada da sociedade, que concentra a maior parte da renda produzida pelos países. Como corpo de Cristo, a Igreja precisa posicionar-se em favor dos desfavorecidos. O seu testemunho e envolvimento são fundamentais. Pessoalmente, cristãos ricos podem agir com amor e liberalidade, colocando os seus bens ao serviço dos outros. Como denominação, a Igreja deve dispor de suas riquezas espirituais e materiais para a prática do bem social, sendo empreendedora do bem de todos. Como cristãos e cidadãos, é o dever de todos que professam a fé em Jesus Cristo lutar por justiça social. Os líderes, cheios do Espírito Santo, devem convocar toda a cristandade para essa prática libertadora de fazer o bem e ao mesmo tempo deixar de fazer o mal. Um estilo de vida simples e a eliminação da prática generalizada do desperdício evita o acúmulo de riquezas e a escassez de alimentos para milhões de seres humanos que tentam sobreviver a baixo da linha da pobreza.
           

Fidelidade ao Evangelho

            O Evangelho de Jesus Cristo está acima dos nossos discursos teológicos. Árdua tarefa é defender uma posição contrária àquilo que o Senhor pregou e realizou. As críticas à Missão Integral esbarram na vida santa do Senhor Jesus e na sua constante preocupação com os pobres do mundo, não somente os espiritualmente pobres, mas, também, os economicamente desfavorecidos. A Evangelii Gaudium rememora alguns textos imperativos do Novo Testamento, que mostram que a preocupação pelos pobres é uma questão de fidelidade ao Evangelho (n. 193). A Igreja não pode ser fiel a Deus e à sua Palavra se não manifestar em suas ações o amor que Deus deu ao mundo ao sacrificar o seu próprio Filho na cruz.
            A proclamação do Evangelho é a de felicidade para os misericordiosos, porque são esses que alcançarão misericórdia (Mt 5:7). Aquele que pratica a misericórdia, por ela será julgado (Tg 2:12,13). O apóstolo Pedro encontra no amor uma ação revolucionária capaz de cobrir multidão de pecados (1 Pe 4:8). Os pais da Igreja, como Agostinho, pregaram e viveram dentro dessa perspectiva. A Evangelii Gaudium cita a seguinte sentença de Agostinho (n. 193):

“Tal como, em perigo de incêndio, correríamos a buscar água para apagá-lo [...] o mesmo deveríamos fazer quando nos turvamos porque, da nossa palha, irrompeu a chama do pecado; assim, quando se nos proporciona a ocasião de uma obra cheia de misericórdia, alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte que nos é oferecida e na qual podemos extinguir o incêndio”.

            Oportunidades de praticar o bem jamais deixarão de existir e atender ao seu apelo demonstrará nossa fidelidade ao Evangelho de Jesus Cristo, nossa integridade de filhos da justiça e a coerência entre o que cremos e fazemos. O apóstolo João escreve: “Amado, não imiteis o que é mau, senão o que é bom. Aquele que pratica o bem procede de Deus; aquele que pratica o mal jamais viu a Deus” (3 Jo 11). Quem pratica o mal social senão o sistema capitalista neoliberal mundano? A Igreja sabe que deve fazer o bem (Tg 4:17), que não deve negligenciá-lo e nele deve aperfeiçoar (Hb 13:16,21). Cada cristão deve ser encontrado entre aqueles que são amigos do bem (1 Tm 6:18; Tt 1:8), jamais entre os que são inimigos dele (2 Tm 3:3). Se houver a oportunidade de fazermos o bem, não devemos desperdiçá-la, mas precisamos nos esforçar incansavelmente para pô-la em prática (Gl 6:9,10). Paulo fala aos romanos: “Não tomeis a ninguém mal por mal: esforçai-vos por fazer o bem perante todos os homens” (Rm 12:17). A esse bem devemos nos apegar ao passo em que detestamos o mal (Rm 12:9). Do túmulo ouviremos a voz do Senhor que nos chamará para a ressurreição da vida, caso tenhamos praticado o bem (Jo 5:29). Longe de ser salvação pelas obras, esta é a ressurreição daqueles que de fato compreenderam a natureza do seu chamamento e foram coerentes com ele.
            A coerência não está somente na prática do bem, mas no seu ensino. A hermenêutica católica oferece fundamentos que testificam a prática da inclusão social dos pobres por meio da atuação efetiva da Igreja. Para a Evangelii Gaudium, a mensagem social do Evangelho de Cristo “É uma mensagem tão clara, tão direta, tão simples e eloqüente (sic!) que nenhuma hermenêutica eclesial tem o direito de relativizar” (n. 193). A hermenêutica reformada, por outro lado, tende a relativizar as implicações sociais do Evangelho, como vimos nas críticas de Little na primeira parte. Essa relativização separa a alma do corpo e o espiritual do social. Devemos perguntar: fora do estilo de vida proposto pela Missão Integral de solidariedade e transformação social, o que resta para a Igreja? Resta um estilo de vida individualista presente no mundo secular e entre os pagãos, embora muitos ateus pratiquem a Responsabilidade Social. A Igreja não pode ser coerente com o mundo, mas com o Evangelho de Cristo. Ela também não pode ocupar uma posição de neutralidade. Ficar em sina do muro decidindo em fazer ou não fazer já uma clara decisão pelo não fazer.


O lugar privilegiado dos pobres

            Para a Evangelii Gaudium (n. 197), existe um lugar privilegiado para os pobres no povo de Deus e no próprio coração de Deus, tanto que até Ele mesmo se fez pobre (2 Co 8:9). O caminho da salvação é assinalado pela existência e participação dos pobres, como a humilde Maria, escolhida para ser a acolhedora do Messias em seu seio. O nascimento de Jesus deu-se em meio aos animais, numa estrebaria, rodeado por pobres pastores. A oferta oferecida por José e Maria pelo nascimento do menino não pôde ser a de um cordeiro, mas aquela designada para os mais pobres, dois pombinhos. No dia do Grande Julgamento, o bem que fizemos aos pobres definirá o estilo de vida que levamos e a verdadeira escolha que fizemos em nosso coração (cf. Mt 25:34-40). Existe um santo motivo para essa preocupação divina com aqueles que possuem pouco ou nenhum recurso neste mundo. Se os pobres não fossem uma preocupação para Deus, não teríamos tantos versículos na Bíblia referentes a eles.
A Evangelii Gaudium afirma que, para a Igreja, a opção pelos pobres é mais uma categoria teológica que cultural, sociológica, política ou filosófica (n. 198). A preferência da Igreja Católica Romana pelos pobres baseia-se nessa compreensão de preferência de Deus também pelos pobres. Segundo o ensinamento de Bento XVI, “esta opção ‘está implícita na fé cristológica naquele Deus que Se fez pobre por nós, par enriquecer-nos com sua pobreza’” (idem). Optar pelo cuidado com os desassistidos, os humildes e os oprimidos seria, então, uma prática de fé coerente com a ação misericordiosa do próprio Deus, que enxerga nos fracos a possibilidade de salvação. Assim, a exortação apostólica conclui (ibdem):

A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvítica de suas vidas, e a colocá-los no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir Cristo neles: não só a apresentar-lhes a nossa voz nas suas causas, mas também a ser seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles.

            Olhamos para aqueles que nada possuem e enxergamos as nossas próprias misérias. A impossibilidade do pobre de prover para si mesmo nos faz lembrar a nossa pobreza espiritual, onde a salvação não pode ser provida senão pela graça de Deus. O apóstolo Paulo tinha esta certeza quando, ao confrontar-se com sua natureza pecaminosa e a impossibilidade de fazer por si só a vontade de Deus, escreveu: “Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?. Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor. De maneira que eu, de mim mesmo, com a mente, sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a carne, da lei do pecado. Agora, pois, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus. Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte” (Romanos 7:24 a 8:1,2). A sensível diferença é que a nossa nova natureza nos impele a proporcionar ao pobre, pela evangelização integral, a oportunidade de conhecer a graça de Deus que provê a sua salvação, e a chance de prover para si próprio a sua inclusão social, deixando a dependência do pecado que gera a morte e a da miséria igualmente mortal.
A ação salvítica de Deus estende-se além do seu sacrifício vicário na cruz: ela se traduz em relacionamento pessoal conosco. Deus está presente na História, Ele nos busca e nos encontra, Ele está em nós e no meio de nós. Podemos buscá-lo em oração, na leitura da Palavra, na sabedoria que enxerga seu agir no mundo. Deus fala conosco, abriga-nos debaixo de suas asas, toma-nos pela mão e nos conduz em segurança. Os seus ouvidos estão atentos às nossas dores, os seus pés se apressam em nos socorrer quando clamamos do mais profundo das nossas misérias, quando colocamos sob seu Senhorio a nossa vida. De igual modo, a relação da Igreja com os pobres não pode ser meramente assistencialista, desprovida de coração e afeto, mas amiga e companheira. “Esta atenção amiga é o início de uma verdadeira preocupação pela sua pessoa e, a partir dela, desejo procurar efetivamente o seu bem. Isso implica apreciar o pobre na sua bondade própria, com o seu modo de ser, com a sua cultura, com a sua forma de viver a fé” (n. 199).
            O amor que se revela em atos demonstra para a pessoa amada o valor que ela possui. É isso que diferencia a autêntica opção pelos pobres: os pobres não são utilizados para cumprir interesses pessoais e políticos (idem). Da compreensão da opção pelos pobres depende a pregação do Evangelho em meio a uma sociedade de mentiras. Segundo a Evangelii Gaudium, “A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária” (n. 200). Eles possuem uma especial abertura à fé e por isso necessitam de cuidado espiritual. Para tanto, ninguém deve excluir-se da prática do bem para com os pobres, do cuidado pelas suas necessidades. A Igreja, como despenseira de Deus, deve estar na linha de frente desta empreitada, oportunizando ao pobre a sua promoção e libertação.
             A Igreja é enviada pelo Senhor a um mundo de desigualdades sociais, urgindo a necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza (n. 202). Na desigualdade reside a raiz de todos os males sociais, que não podem ser sanados com os programas assistencialistas do governo nem com medidas paliativas e aprisionadoras. Se a sociedade está indiferente, se o sistema político e econômico não produz uma preocupação sincera e transformadora com as causas emergências dos pobres, a Igreja não pode vestir-se do mesmo sentimento, mas deve viver verdadeiramente para o bem comum e a justiça social de quê o mundo necessita. O mercado mente de forma desavergonhada e tenta convencer as pessoas que elas valem o quanto têm, produzindo uma falsa segurança que aprisiona a todos no consumismo e na mentira de que podem ser felizes dessa forma.
            Cuidar ou não dos pobres pode significar o fortalecimento ou o fim da comunidade cristã. As portas do inferno não prevalecerão contra a Igreja, mas a sua dureza de coração e a sua insensibilidade diante das misérias humanas podem torná-la inoperante, como o sal que não sai do saleiro. A Evangelii Gaudium afirma (n. 207):

E qualquer comunidade da Igreja, na medida em que pretender subsistir tranqüila (sic!) sem se ocupar criativamente nem cooperar de forma eficaz para que os pobres vivam com dignidade e haja a inclusão de todos, correrá também o risco da sua dissolução, mesmo que fale de temas sociais e critique os Governos. Facilmente acabará submersa pelo mundanismo espiritual, dissimulado em práticas religiosas, reuniões infecundas ou discursos vazios.

            Essa exortação do líder da Igreja romana é, infelizmente, um retrato fiel da atual situação da Igreja evangélica. Estamos experimentando uma época em que o mundanismo espiritual (traduzido pela ambição evangélica por bens materiais, prosperidade financeira e sucesso total), as práticas religiosas vazias (traduzidas em cultos de cura e libertação, sessões de descarrego, amuletos e superstições), as reuniões infecundas (traduzidas em celebrações litúrgicas e eventos desprovidos da verdadeira adoração, cuja essência é antropocêntrica) e os discursos vazios (traduzidos em pregações e ensinos sem fundamentação bíblica, ou o que é pior: com deturpação do texto bíblico), tem sido o modus vivendi e o modus operandi dos que se declaram “crentes”. Embora existam igrejas verdadeiramente cristocêntricas e fundamentadas na Bíblia, mesmo essas carecem de uma revisão teológica que as coloque em contado amoroso com os pobres.




[1] Este capítulo e o capítulo “A dimensão social da evangelização”, na parte três, foram inseridos após a conclusão deste estudo. A exortação apostólica Evangelii Gaudium, do papa Francisco (2013), chegou ao meu conhecimento recentemente. Ao ler os seus textos, percebi bastante semelhança com a doutrina protestante da Missão Integral e aquilo que eu já vinha debatendo aqui. Estudá-la é importante para apreendermos outros ensinamentos que possam somar-se ao ideal buscado de Evangelho Integral, demonstrando o pensamento de outra corrente do cristianismo e a sua prática, que deveria ser também uma prática das igrejas reformadas. Os documentos oficiais da Igreja Católica possuem parágrafos numerados para facilitar a sua leitura e estudo, que são os números que aparecem entre parênteses.

[2] Na parte dois encontra-se o tema “solidariedade” mais aprofundado.

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quinta-feira, 16 de abril de 2015

REGRAS BÁSICAS PARA A INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA



Tenho postado alguns textos nas redes sociais para debate com temas importantes para os cristãos. O que percebo nos comentários que são feitos, é que as pessoas em geral não sabem utilizar as Escrituras para confirmar as suas crenças. A grande maioria se atém a textos isolados e fora de contexto para defender o seu ponto de vista. Por isso decidi publicar este breve estudo. Eis algumas regras que você precisa saber para compreender um texto bíblico e antes de dizer que a Bíblia afirma tal coisa.


A regra áurea: a Bíblia é a sua própria intérprete

            Se você é católico, deve saber que a Bíblia não é a sua única regra de fé e prática cristãs e que o catolicismo romano possui duas outras fontes da Revelação divina que consideram igualmente inspiradas, no mesmo nível da Bíblia: a Tradição e o Magistério. O dogma da imaculada conceição de Maria, por exemplo, não está expresso na Bíblia, mas faz parte de uma tradição que se estendeu pelos séculos e que acabou por ser sancionado pelo Magistério da Igreja como ponto digno de fé, parte da Revelação de Deus. Mas se você é um cristão reformado, protestante, entende que a Bíblia é a única Revelação de Deus, a sua Palavra final, suficiente, perfeita e inerrante. Assim, ao estudar a Bíblia, você deverá buscar sempre compreendê-la a partir dela mesma, daquilo que está escrito. Algumas ciências, como a Arqueologia, a História e a Geografia podem nos ajudar a elucidar melhor algumas passagens, mas sem jamais abandonar o contexto em que foram escritas.
As coisas espirituais devem ser comparadas com as espirituais (1 Coríntios 2:13), que são as palavras escolhidas pelo Espírito Santo para falar acerca da Revelação de Deus. A Lei perfeita de Deus (cf. Salmo 19:7), de onde nada se pode tirar ou acrescentar (cf. Apocalipse 22:19), basta para nortearmos a nossa fé e averiguar a veracidade dessas doutrinas. O texto de 2 Timóteo 3:14-17, enfatiza a interpretação da Bíblia através dela mesma como uma forma correta de ensino do crente. O apóstolo Paulo exorta Timóteo a permanecer naquilo que aprendeu, não por meio de uma Tradição oral, mas nas “sagradas letras”. Estas sagradas letras são divinamente inspiradas e nelas, seguindo a tradição judaica, os meninos começavam a ser formalmente instruídos no Antigo Testamento quando chegavam aos cinco anos. Embora o judaísmo tenha criado outras escrituras para darem suporte à sua própria interpretação da Bíblia, como o Talmude, a Escritura, cujos manuscritos originais foram inspirados diretamente por Deus, eram as Escrituras aptas para a ministração na verdade, a repreensão do mal, a correção e o ensino da maneira certa de viver. A Bíblia fala por si própria e o ensino baseado nela é suficiente para a educação cristã. Quando se ultrapassa o que nela está escrito, surgem as heresias e as cobranças indevidas de formas de piedade baseadas na cultura e na mentalidade dos povos.


Primeira regra: tomar as palavras em seu sentido usual, comum

Quando o intérprete se depara com um texto bíblico, ele deve ter em mente que ele não foi escrito em sua língua, mas em outros idiomas. Algumas palavras utilizadas pelos autores bíblicos tiveram sentido para quem as escreveu o os seus leitores na época em que o texto fora escrito. Assim, quando lemos qualquer palavra na Bíblia, precisamos entender o sentido que ela carrega no texto e no contexto original em que foi escrita. Conforme veremos mais adiante, uma mesma palavra pode ter sentidos variados, dependendo do autor que a escreveu, da sua época, do contexto histórico e do contexto de ideias que ele pretendia transmitir naquele momento.
            Um erro corrente até mesmo nas traduções da Bíblia é a escolha errada de palavras para substituir termos bíblicos que no nosso contexto possuem um significado diferente. Por exemplo, aquilo que hoje traduzimos como “coração”, no texto hebraico significa as entranhas, literalmente as nossas tripas. Na nossa cultura porém, é do coração que brotam as emoções, assim como os judeus faziam alusão às entranhas. Mas o sentido é preservado. Embora existam textos escritos na mesma época das escrituras que contenham as mesmas palavras, para compreendermos o sentido daquilo que a Bíblia nos diz, é nela mesma que devemos nos basear. A palavra “evangelho”, por exemplo, não é de origem cristã, mas era corrente na época em que os textos bíblicos foram escritos e significa “boa-nova”. Mas para sabermos que boa-nova é essa, devemos consultar as Escrituras.
Tendo-se o cuidado para não tomar a palavra ao pé da letra, mas buscando os modos próprios de expressão de cada idioma (Lund e Nelson), é necessário buscar sempre o sentido literal dos termos. Alguns textos podem nos soar estranhos, como Lucas 14:26 ou Mateus 10:37, mas o estudo do idioma e do contexto sempre nos levarão a uma correta interpretação da Bíblia. Compare-se, por exemplo, os diversos significados, em diversos textos e contextos diferentes, das palavras “mundo” e “carne”; ou das palavras “salvação”, “confiança”, “fé”. Ou mesmo de “obras” em dois contextos: a teologia paulina da justificação pela fé e a epístola de Tiago, irmão de Jesus.


Segunda regra: tomar as palavras dentro do conjunto da frase

Conforme o exemplo dado no último parágrafo, existe uma diferença entre “obras” nas teologia paulina e na epístola de Tiago. Se nos atermos apenas a um dos sentidos, o outro se perde e nossa exegese jamais poderá ser correta. O pensamento do autor ao escrever a frase é que determina o seu significado no texto. Ainda que um termo seja complexo e de difícil compreensão, estudando-o em seu contexto literal podemos chegar a uma ideia correta do que o autor estava dizendo aos destinatários originais e o que Deus está nos dizendo hoje.
Uma palavra que podemos estudar é “graça”. As traduções católicas da Bíblia procuram enfatizar a palavra “graça” utilizada pelo anjo ao anunciar a Maria que ela havia sido escolhida para ser a mãe do Salvador da humanidade (Lucas 1:28). A Edição Pastoral da Bíblia Sagrada, pela editora Paulus (ed. 2003), traz a seguinte tradução: “Alegra-te, cheia de graça!”. Como vimos anteriormente ao estudarmos sobre o dogma da Imaculada Conceição, não existe possibilidade nem necessidade de Maria ter sido concebida sem a macha do pecado original. Todavia, o texto áureo do dogma da imaculada conceição de Maria repousa sobre este versículo mal traduzido e mal interpretado pelos biblistas católicos.
O contexto da frase em Lucas 1:28 não dá margem para essa compreensão equivocada, mas acentua a graça inigualável com a qual Maria iria ser contemplada: a de ser mãe do Salvador. O termo original grego (favorecida), significa conceder graça, no sentido de mostrar favor a alguém; no caso deste versículo, significa um “favor divino para uma vocação especial” (Rienecker e Rogers). A graça não estava na sua imaculada conceição, mas no favor de Deus sobre sua vida. Graça sempre estará mostrando a ação graciosa de Deus a nosso favor, seres destituídos da sua glória e carentes de salvação, como em Efésios 2:8,9. Em Atos 4:13, porém, ela significa a pregação do evangelho. Em outros textos, como Tito 2:11, graça faz referência que Cristo trará na sua vinda. Já em Hebreus 13:9, graça significa as doutrinas bíblicas. Quanto a esta regra, Lund e Nelson (p. 46, 47) afirmam que “a presente regra tem importância especial ao determinar se as palavras devem ser tomadas no sentido literal ou no sentido figurado. Para não cometer erros, é muito importante, também nesse caso, deixar-se guiar pelo pensamento do autor e tomar as palavras no sentido indicado pelo conjunto do versículo”.


Terceira regra: tomar as palavras no sentido indicado em todo o texto

É preciso lembrar que a Bíblia é também um texto humano e segue as regras comuns de escrita de um texto. Ela contém elementos linguísticos e literários, como figuras de linguagem que determinam o sentido das palavras e das ideias dos autores. O sentido verdadeiro do texto bíblico está inserido na Bíblia. Os teólogos católicos não se importam em buscar na sua Tradição e nos escritos dos Pais da Igreja algo que corrobore com algumas de suas doutrinas e dogmas. Anteriormente falamos a respeito da diferença entre o emprego de palavra “obra” na teologia paulina da justificação pela fé e na epístola de Tiago. Para o cristão reformado, a Bíblia não pode cair em contradição nem dar margem a interpretações equivocadas. O catolicismo, porém, admite que a Bíblia está aberta a articulação de novos significados (polissemia), colocando textos de diferentes visões e épocas em um macrocontexto, ocasionando a passagem da intertextualidade para a intratextualidade (Murad, 2009). Com isto, Murad faz uma ponte entre Paulo (cf. Romanos 1:17,28) e Tiago (cf. 2:14-26) para afirmar que “o ser humano é justificado pelas obras, não simplesmente pela fé” (p. 88).


Quarta regra: considerar o objetivo ou desígnio do texto ou do livro ou passagem em que ocorrem as palavras ou expressões obscuras

Costuma-se brincar com as pessoas que usam a Bíblia como se ela fosse um talismã, abrindo-a em qualquer página e apontando o dedo para ver o que Deus está falando para elas naquele instante. Abrem a Bíblia, fecham os olhos e apontam um ponto qualquer em busca de uma direção de Deus para suas vidas. E o dedo para em Mateus 27:5, que diz: “Então, Judas, atirando para o santuário as moedas de prata, retirou-se e foi enforcar-se”. Não satisfeitos com o resultado, executam o mesmo procedimento e apontam para Lucas 10:37, bem no final do versículo, onde Jesus diz: “Vai e procede tu de igual modo”. Esta é uma anedota que denuncia a maneira equivocada como as pessoas se utilizam da Bíblia, buscando nela somente aquelas partes que lhe interessam, dando a essas partes a sua própria interpretação, sem levar em conta todo o contexto no qual elas estão inseridas. E também é um dos métodos adotados pelos teólogos marianos para criarem suas doutrinas.
Além de nos proporcionar um conhecimento mais profundo, estudar as passagens aparentemente contraditórias nos traz a verdade por trás do texto bíblico. Em que ocasião o texto estudado foi escrito? Quais eram, por exemplo, as circunstâncias que levaram Jesus dizer a Maria: “Mulher, que tenho eu contigo?” (João 2:4)? Será que a recusa de Jesus em dar atenção à sua mãe e aos seus irmãos (cf. Mateus 12:46-50; Marcos 3:31-35), demonstrou uma falta de respeito e de amor do Senhor? A tarefa de interpretação da Bíblia deve levar em conta a sua totalidade, comparando palavras, textos e doutrinas com outras encontradas dentro da própria Bíblia para que se chegue a um consenso. Quando a Bíblia se cala com relação a alguma assunto, não significa que ela não o condena ou o apoia (p. ex.: o uso de camisinha, a eutanásia, a clonagem de seres humanos), por isso tais assuntos precisam ser tratados com bastante cuidado.


Quinta regra, primeira parte: consultar as passagens paralelas

Quando as palavras não nos trazem o sentido claro do texto ou nos apresenta mais de um sentido, devemos consultar toda a frase. Se encontrarmos mais sentidos variados, é necessário estudar todo o contexto da passagem. Quando este ainda não é suficiente, é preciso examinar o desígnio ou o objetivo geral da passagem ou do livro em questão. E se mesmo assim nossas perguntas ainda não forem respondidas, devemos buscar o sentido em outras partes das Escrituras, comparando doutrinas, relacionando textos, interpretando a Bíblia sempre do ponto de vista dela mesma.
A hermenêutica reformada, por mais que se reporte a diversos teólogos para explicar algumas passagens da Bíblia – como também fazemos aqui – entende que a verdade não está lá fora, mas lá dentro, na Palavra de Deus. Homens que interpretam a Bíblia devem possuir autoridade espiritual e técnica para tal, a mesma que todos os que possuem o Espírito Santo devem possuir, sendo a segunda, fruto de muito trabalho e esforço, sempre sob a guia do Espírito Santo. Para o catolicismo romano não é assim. Às passagens de difícil compreensão, basta os estudos dos santos e dos Pais da Igreja, mesmo que a sua compreensão dos textos bíblicos extrapolem o seu sentido ou contradiga-o.
A quinta regra nos ensina a buscar passagens paralelas às que estamos estudando para que cheguemos a um sentido correto do texto. Elas devem fazer referência umas às outras, ter relação entre si e tratar do mesmo assunto (Lund e Nelson). Esta atitude nos traz conhecimento mais exato e profundo acerca das doutrinas cristãs e podem nos revelar muito sobre o estudo da mariologia. Um texto tomado isoladamente não pode fornecer uma base sólida para uma doutrina. Por exemplo, como o catolicismo crê na comunhão dos santos e na salvação como um ato coletivo, onde a nossa salvação pode salvar outra pessoa (a salvação dos pais também seve para as criancinhas), o texto de Atos 16:31, onde Paulo diz ao carcereiro “Crê em Jesus Cristo e serás salvo, tu e tua casa”, parece dar vazão a essa doutrina. Mas o contexto nos mostra algo diferente, isto é, depois que o carcereiro creu, toda a sua casa também creu, de modo que cada um foi salvo por sua própria fé (cf. vs. 32-34). Se fôssemos buscar outras partes da Bíblia que comprovassem a doutrina da salvação comum idealizada em Atos16:31 pelo catolicismo romano, não a encontraríamos. Isto é, teríamos um único texto capaz de supostamente sustentar tal doutrina. Em todo o livro de Atos (cf. 4:12; 10:43; 13:39) e em toda  bíblia (cf. João 3:16, 36; Efésios 2:8,9) a salvação é pessoal e através da fé.
Lund e Nelson afirmam a necessidade de se utilizar a interpretação textual montando um paralelo de palavras. Isto pode ocorrer em duas situações dentro das doutrinas marianas: o termo “graça” e seus significados em diferentes textos e contextos; e o termo “irmão” e seus paralelos, conforme já estudado. Outro fator citado é que o sentido das palavras podem mudar de acordo com o autor do texto estudado, a época em que ele foi escrito e o seu contexto. Uma mesma palavra pode expressar sentidos diferentes, como “obras”, “carne”, “mundo”. Onde encontrar outros paralelos que confirmem que “muito favorecida” significa “cheia de graça”, isto é, isenta do pecado original, em outras partes da Bíblia? Que outros textos paralelos, além de João 2:5, poderiam nos dar a certeza que Maria está demonstrando seu múnus intercessor e mediador entre Deus e os homens? Eles simplesmente não existem.


Quinta regra, segunda parte: paralelo de ideias

A quinta regra da hermenêutica vai direto ao âmago da doutrinação e da dogmática marianas, por exemplo. Muito além dos paralelos entre palavras e textos, é necessário o paralelo entre ideias de um mesmo autor ou de toda a Bíblia. Lund e Nelson escrevem:

Para atingir uma idéia (sic!) completa e exata do que ensinam as Escrituras, nesse ou naquele determinado texto, obscuro ou discutível, não apenas são consultadas as palavras paralelas, mas também os ensinos, as narrativas e os fatos contidos em passagens ou textos elucidativos que se relacionam com o texto obscuro ou discutível.

            Examinemos o texto de Lucas 1:34,35, onde o anjo anuncia o nascimento de Jesus a uma virgem chamada Maria. Note-se que, ao contrário de Zacarias (1:18), Maria não esboçou qualquer dúvida quanto ao que o anjo lhe havia dito, mas apenas quis saber como sua gravidez ocorreria, uma vez que ela não tinha relação com homem algum. Que Maria era virgem quando concebeu de Jesus é doutrina aceita por católicos e protestantes. Mas com base neste texto, a Igreja católica afirma que Maria era virgem antes do parto, foi virgem durante o parto e permaneceu virgem perpetuamente após o parto. Como extrair de Lucas 1: 34,35 tal doutrina? O texto realmente diz isso? Que outros textos paralelos podemos consultar para afirmar a virgindade perpétua de Maria? Embora tais textos não existam, é neste mesmo contexto que os teólogos católicos se baseiam para insistir que estava nos planos de Maria consagrar-se totalmente a Deus e permanecer virgem. Todavia, o texto afirma que Maria já estava desposada com José – o que na cultura judaica significava o noivado como já um contrato de casamento. Isto significa que ela iria casar-se um dia com ele. Se sua virgindade já estava consagrada a Deus, por qual motivo ela se casaria?


Quinta regra, terceira parte: paralelos de ensinos gerais

Quando o paralelo com as palavras e as ideias expressas nos textos estudados não são suficientes para nos esclarecer determinadas passagens, deve-se recorrer ao ensino geral das Escrituras. Esse tipo de paralelo encontra-se na própria Bíblia. Eles foram abundantemente usados por Jesus ao falar a respeito da sua missão, da sua divindade, da sua morte e ressurreição. A doutrina da justificação pela fé defendida por Paulo na epístola aos romanos, é confirmada por toda a Bíblia, desde Gênesis até o Apocalipse. A verdades acerca de Deus, de Jesus Cristo e do Espírito Santo podem ser observadas em numerosas passagens bíblicas. Os textos que nos são obscuros e às vezes parecem se contradizer, encontram sua explicação nos ensinos gerais da Bíblia. Eis um exemplo: em Romanos 3:10 lemos que “Não há justo, nem um sequer”, mas em Gênesis 6:9 Noé fora chamado de “homem justo”, bem como Ló, em 2 Pedro 2:7 e José, em Lucas 23:50. Então o homem pode ser chamado justo? Isto deve ser visto à luz da doutrina geral da justificação, onde vemos claramente que é Deus quem justifica o pecador (cf. Romanos 5:19; 2 Crônicas 6:23; Deuteronômio 25:1; Isaías 45:25; Romanos 5:1; Gálatas 3:8; Tito 3:7).
A importância de consultar esses paralelos é para ver se tal palavra deve ser levada ao pé da letra ou no sentido figurado (Lund e Nelson). Jesus nos diz que é a porta e sabemos que ele não é uma porta literal. Estudando os paralelos e o sentido das figuras de linguagem da Bíblia, entenderemos o que Ele quis dizer com isso. Também somos chamados de ovelhas, de sal e luz. O sentido destas figuras na Bíblia nos dará uma visão correta do texto. Do contrário, se levarmos tudo em seu sentido literário, sem identificarmos a intenção do autor no texto, acabaremos na criação de heresias. A seguinte explicação de Lund e Nelson (p. 86, 87), além de nos esclarecer o que estamos afirmando, vislumbram um pouco dos problemas causados pela exegese bíblica católica:

Muitos se distraem ou se contentam formando castelos de doutrinas sem fundamento, rebuscando e comparando tais figuras ou símiles, tirando conseqüências (sic!) ilícitas, e mesmo contrárias às Escrituras. O espírito humano parece encontrar gosto especial em semelhantes fabricações caprichosas e jogos de palavras. E isso apenas ressalta a necessidade de estudar as figuras com moderação especial e sempre com toda a seriedade.

            O estudioso da Bíblia precisa estar atendo às suas figuras e símbolos para poder formar uma teologia correta. Mais adiante voltaremos ao tema. É necessário, ainda, entender que na língua original da Bíblia – hebraico, aramaico e grego – nem sempre as palavras e expressões possuem apenas um sentido, mas vários. Com exceção de Lucas, todos os escritores do Novo Testamento eram judeus que se expressavam através da língua grega. Acostumados a falar um dialeto hebraico chamado aramaico, eles tinham de expressar-se numa outra língua de outra cultura. O grego utilizado na escrita do Novo Testamento foi o koinê, que significa “comum” e já sofria influência do latim, língua utilizada pelo Império Romano. Imaginemos judeus com vários graus de instrução expressando-se numa língua que não era a sua usual, tendo que adequar vocabulários e expressões. Agora, imaginemos isso transportado para a nossa língua e a nossa cultura.


Bibliografia


LUND, E.; NELSON P. C. Hermenêutica: princípios de interpretação das Sagradas Escrituras. São Paulo: Vida Acadêmica, 2007.

MURAD, Afonso. Maria, toda de Deus e tão humana. São Paulo: Paulinas, 2009.

Observação: Adaptado do livro “Desvendando o segredo de Maria: estudos apologéticos sobre mariologia”, da minha autoria. 


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